Meu texto sobre mudar de país: Munique, Alemanha

Todos os colegas que se mudaram para trabalhar no exterior escreveram um texto sobre o que acham do novo país. Esse é o meu sobre morar em Munique, na Alemanha. Eu sempre fico inseguro de escrever algo, porque eu sei que a minha opinião muda com o tempo, mas então eu percebi que escrever é como tirar um fotografia, e esta é a fotografia do que vejo hoje como brasileiro na Alemanha. Eu vou começar contando sobre minha situação atual e de alguns colegas, por que eu acho que isso diz muito sobre a Alemanha e o Brasil.

Em algumas semanas vai fazer dois anos que me mudei pra cá, e hoje moro em uma república com mais dois Alemães, uma moça no quarto pequeno e um moço no quarto grande. O moço, 43, engenheiro que trabalha no centro aeroespacial de Munique, se separou da esposa recentemente, e pelo que ele me explicou, na guarda alternada daqui a criança mora na mesma casa e os pais é que alternam. Então ele na verdade mora metade do tempo aqui e a outra metade na casa dos 3 filhos. Quando comentei que era brasileiro, ele imediatamente mencionou o “the big boss” (nas palavras dele), que é o chefe do chefe do chefe … que é brasileiro, e mencionou também que ele é formado no ITA. Eu achei curioso ele saber e lembrar desse “detalhe”. Eu sempre ouvi falar que o ITA (em São José dos Campos, SP) era referência em Aeronáutica, e que era uma das universidades mais reconhecidas do mundo na área e tal. Aparentemente, é tudo verdade.

A outra moradora (39), está desempregada há alguns meses e procura trabalhar com agricultura, horticultura e plantas em geral. Ela recebe um auxílio do governo, parecido com o nosso seguro desemprego, que são 560 euros por mês. Eu sei, eu sei, convertendo ingenuamente pra Reais hoje dá um valor utópico de ~ 3000 Reais. Então, pra efeito de comparação, te digo que o valor que ela paga no menor quarto da casa é 450 euros por mês. Ah, eu ainda não falei sobre o mercado imobiliário em Munique, né?

Eu estou no quarto médio e pago 700. Um colega que estudava Alemão à tempos e trabalhava com Alemães já conhecia histórias de terror que se contam sobre a disputa por moradia aqui. Antes de sair do Brasil, quando ele me contou algumas delas eu nem dei bola, comigo ia ser diferente. Ledo engano.

Logo no começo da pesquisa por moradia ficou claro que aqui é mais comum as pessoas dividirem apartamento ou casa, sem serem familia. Vi coisa que no Brasil não imagino possível, como um moço que divide apartamento com uma moça e não são um casal. Às vezes um deles ou ambos, tem seu namorado ou namorada que mora em outra casa. Mas estranhei os preços dos aluguéis também não serem tão altos e mesmo assim ser difícil ser “o escolhido” para morar num aparamento. Depois fiquei sabendo que os preços dos imóveis seguem uma lei e é a prefeitura que controla os tetos dos preços, e não os proprietários. Isso faz que com que a competição não seja disputada no preço, que não é algo que estamos acostumados a ver no Brasil. Ainda mais no Brasil de hoje que parece sofrer de uma onda neoliberal (tendo, no ministério da fazenda, o Paulo Guedes como um dos sintomas).

Eu trabalho com engenharia de software em uma startup (se prepare para anglicismos) Alemã novinha, com cerca de 3 anos de idade. Os founders (que não devem ter nem 30 anos) participaram de um round de apoio do governo no início do projeto, e receberam um investimento a fundo perdido, salários por um ano para cada e um escritório na universidade da cidade, como num programa de aceleração de startups. Depois eles também receberam mais investimentos em um programa famoso no mundo das startups (Ycombinator). As pessoas na empresa são massa e os líderes parecem que sabem o que querem, eu gosto.

Antes de morar aqui, morava com um colega Russo com a mesma idade que eu, ele era o inquilio principal e eu sublocava um dos quartos. Já tinhamos combinado logo no começo que era temporário, pois ele tinha planos de casar e começar uma família (com a namorada que ainda estava na Rússia), ia precisar do quarto de volta. Lembro de uma das conversas, onde Vladimir começava:

— Aqui na Alemanha vale muito a pena casar, sabia que o governo te paga até 600 euros por mês por estar casado? e depois mais 400 pelo primeiro filho.

Eu fazia cara de quem não entendeu nada.

— Pelos imposto de renda … agente paga um montão de impostos na fonte aqui, tem que ter algum retorno de algum jeito, né? Casado muda de categoria do imposto e recebe o desconto mensal além da restituição anual …

Eu indignado respondia:

— Quer dizer que EU vou pagar pelo SEU casamento e SEU filho?

— Claro, voce é solteiro, tem que pagar, é a regra.

— Mas isso não é justo! Eu trabalho igual você, e se VOCÊ vai ter mais trabalho ou mais custos por que tem filho, isso é problema SEU! Já não basta o aluguel ser mais caro pra quem é solteiro, agora eu ainda pago mais imposto por isso? Aliás, se o governo quer que o país se desenvolva e as pessoas trabalhem melhor, eu diria que ter filhos é uma distração … ninguém trabalha melhor e com mais energia depois de ter filhos, diria que na melhor das hipóteses mantém o mesmo ritmo…

Eu demorei um pouco pra aceitar isso, mas agora entendo que faz sentido, pois a população estava num processo de envelhecimento. Isso gera o risco do povo desaparecer ou (talvez antes disso) a economia começar a falhar, por falta de pessoas em idade “economicamente ativa”.


Nas primeiras semanas, estava na fila da máquina pra comprar um passe de transporte, dentro da estação de trem. O sujeito que usava a máquina na vez dele virou e me disse algo em alemão, ao que eu obviamente respondi “Sóri, ai donti anderstendi” com cara de susto. Aí ele virou pro outro que estava também na fila e disse a mesma coisa, e eles começaram a inspecionar a máquina, dar uns tapas nela e apontavam para a tela e riam. Eu olhava pra tela e só via consoantes, tudo normal. Por que eles riam? O que aconteceu ali? Nunca vou saber.

Sabe a sensação de estar na casa de um conhecido (mas não amigo)? Você não sabe se pode sentar, se pode ser servir ou se pede para ser servido, ou se pode abrir a janela. Você não conhece as regras da casa. Pois é uma sensação parecida, só que aumentada. No começo é sempre assim, ficar observando e tentando entender qual é a regra, e por que as pessoas fazem o que elas fazem. E é uma arte sútil apreciar como as regras influenciam nosso comportamento e nossas escolhas. Até mesmo escolhas importantes como casar e trabalhar. Aliás o tópico “regras” parece ser bem corriqueiro na cultura alemã, mas acho que isso é assunto pra outra conversa.

No mais, tive que me adaptar com a cultura da não interrupção ao falar, com o fato de que eles não tem vergonhinha de corpo pelado, de que acham chique não se impressionar (ou de não demonstrar isso), e são não necessariamente educados, mas extramente diplomáticos.


Quando me mudei para São Paulo (capital) fiquei uns meses em um albergue barato, perto da estação Vila das Belezas. Não é um bairro particularmente perigoso, mas eu não dava bobeira na rua depois que anoitecia. Quando me mudei para um condomínio, este tinha uma pequena área verde com uma trilha que dava para a quadra. Fiz várias caminhadas leves lá, varias vezes à noite, e me sentia muito privilegiado de poder sentar num banco de praça cercado de flores ao ar livre, sem precisar me preocupar.

Em Munique, se por um lado o mercado imobiliário agresssivo pressiona para menores área privadas, a segurança e o cuidado que a cidade tem com os espaços públicos me dá sensação de que eu tenho um grande quintal. Aliás esse conceito de condomínio privado parece não ser comum aqui, e faz sentido, já que a cidade é como um grande condomínio público. Tem muita área verde e ciclovias. Pedalar aqui é um sonho. Não só pelas ciclovias, mas também por que ninguém acha estranho usar bicicleta como meio de transporte. Aqui eu não preciso ficar dando expilcações aos colegas de trabalho quando chego de bicicleta. Não somente é consenso que a bike é excelente meio de transporte, como também é parte da cultura alemã ter um certo orgulho disso.


Eu lembro de ouvir desde criança, que o Brasil é um país abençoado, sem terremoto, sem vulcão, sem furacão e sem guerra com um povo cheio de energia. É tudo verdade. Eu sei, eu sei. Agente tem muitos problemas, mas é sempre do lado de dentro da casa.

Uma vez eu fiz a brincadeira de chamar o colega de trabalho de nazista, durante o intervalo do almoço. Era uma brincadeira inocente, o tipo de brincadeira “saudável” que agente fazia entre os colegas de empresa no Brasil. Nesse momento de distração, eu esqueci que ali tinham dois agravantes: [1] estamos na Alemanha, e aqui esse assunto é tabu, tem que ter muito cuidado pra brincar com isso, e [2] o colega era Alemão, e eu sendo estrangeiro … 😬 Ninguém reclamou ou ficou ofendido nem nada, mas eu percebi no silêncio que veio em seguia, que eles estavam processando o fato de eu ser brasileiro e que eu não tenho compromisso nenhum com esse assunto. Afinal no Brasil agente nem sabe o que é Nazismo. É algo que aconteceu à 600 anos atrás do outro lado do mundo, e agente não tem nada com isso mesmo. Eu conheci Alemães que passaram um tempo no Brasil e testemunharam uma sensação de liberdade, por que não precisam ficar “controlando tudo o que vai falar”, pode falar o que quer e ninguém vai ficar julgando. Isso acontece porque o povo alemão carrega consigo uma certa culpa pelo nazismo, e existe um esforço nacional para não deixar essa historia se esquecer, então desde pequenos as crianças aprendem sobre ela. Me impressiona de ver essa culpa em jovens, porque eu imagino que seria muito fácil dizer “ei, eu não fiz nada de errado, se meus avós fizeram isso é problema deles”. É uma discussão cansativa, mas por outro lado necessária, pra que essas coisas não se repitam mesmo. Isso faz parte do que se chama de “dívida histórica”, que é o tipo de dívida que ninguém gosta de carregar mesmo e é duro de pagar.

Agora eu também parei de falar casualmente sobre isso, pra tocar no assunto precisa de um certo cuidado. Por que estou aprendendo o idioma, acabo consumindo bastante dos conteúdos históricos, em séries, livros e quadrinhos, então acabei entendendo melhor de onde vem toda essa tensão. O nazismo “oficialmente” acabou com a guerra em 45, mas é óbvio que as pessoas que apoiavam o nazismo e tinham valores nazistas não deixaram de ser acreditar naquelas coisas do dia pra noite, só porque acabou a guerra. E de 45 pra cá não é muito tempo, não é dificil encontrar vovôs e vovós fofos que ainda tem pelo menos uma simpatia pelos ideais nazistas. Aliás, se no Brasil agente fica de orelha em pé com o protofascismo bolsonarista, isso acontece porque fascismo nunca foi nossa tradição. Na Alemanha, tem até um partido que é nazista, todo mundo sabe que é nazista, mas eles não podem dizer que são nazistas porque é crime. Então eles estão sempre andando no limite do que a lei permite, que é o suficiente pra turma entender o recado e se alinhar.

E ainda nem mencionei as histórias horrorosas dessa época, cada coisa triste de dar frio na espinha. Aliás, recomendo a série do Netflix “unsere mütter unsere väter” (nossas mães, nossos pais), que conta como a segunda guerra afetou um grupo de amigos. Com esse seriado eu percebi como eu cresci com uma visão romantizada da guerra, que é a visão dos filmes estadunidenses. Quando criança eu colecionava bonequinhos de guerra, com helicópteros e tanques de guerra, e todos os desenhos animados sempre tinham um cenário de guerra. Teve uma época que eu queira muito ter um revolver de espoleta. Era uma coisa que se supunha ser brinquedo de criança. Hoje vejo como um escândalo dar um coisa dessas pras crianças, não só por ser perigoso mas também pela fetichisação das armas de fogo.


No começo eu achava engraçado falar sobre o nosso presidente com os colegas estrangeiros, e tinha curiosidade pra saber o que eles pensavam. A graça acabou logo, substituída por uma vergonha. É uma vergonha estranha, é uma vergonha triste. Por que quando voce faz alguma besteira, voce lida com isso. Bater foto com casca de feijão no dente? ok. Ou então, se trancar pra fora do apartamento (do lado de fora as portas só se abrem com chave), ou demorar de mais pra avisar a senhorinha na banca de jornal, que já está falando comigo há 5 minutos, que eu não entendo nada do que ela esta falando em Alemão …

Eu demorei pra aprender a como reagir aos comentários. Às vezes, em eventos sociais, algum alemão vem perguntar o que eu acho do presidente, já com aquele sorrisinho de canto de boca, sabe? Como eu traduzo “boçal”? Como fala “estrupício”? Certa vez, na ingenuidade de traduzir direto do Português, disse que nosso “president is a door”. A moça na roda da conversa quis ajudar completando: “ador …adorable?” Tadinha.

Mas acho que o pior é quando eu tentava explicar a minha frustação do Bolsonaro pra colegas Alemães, e eles não se impressionavam. Pra eles tudo normal, um paiséco com um presidenteco. Porque eles não sabem do tamanho do Brasil, do tamanho da literatura, das danças, da música, das riquezas naturais e do povo bom e trabalhador. Pelo menos o Trump nos EUA ajuda a aliviar esse efeito. O colega estadunidense estava besabafando outro dia “como que pode um país como os USA ter um presidente desse nível?” E todos concordavam perplexos.


Nunca senti muita saudade na minha vida até vir morar aqui. Naturalmente eu sinto saudade dos pais, da famíla e amigos, mas também notei que ficava com saudade de Brasil. É como se existisse uma coisa invisível da qual eu sinti falta. Comprei um violão e voltei a praticar as músicas brasileiras que conhecia e aprendi algumas outras novas, e percebi como a música também ajuda a nos conectar com o país. É como se por alguns minutos eu estivesse no Brasil. Agente brasileiro não percebe isso, mas nas músicas Brasileiras existe tanta brasilidade na letra, no gingado, na harmonia, tudo se completa de um jeito que só se vê no Brasil. Mas agente só percebe no contraste com a vida no exterior. E quando estrangeiros comentam que os brasileiros são calorosos, mais hospitaleiros e mais bondosos, é tudo verdade.